quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Quando o passado nos visita

Há cerca de onze anos, quando eu ainda vivia na Charneca de Caparica, veio parar-me às mãos o miúdo mais difícil que eu tinha tido, até então. Foi a primeira criança de quem eu não gostei. Tinha 11 anos e andava no 5º ou no 6º ano, já não posso precisar, num colégio particular. Era um garoto complicado. Indolente, preguiçoso e muito muito gozão. Tirava-me do sério amiúde. Lembro-me que em muitas ocasiões eu precisava de interromper as minhas sessões com ele para me refugiar na casa-de-banho e contar até dez. Lembro-me, muito bem, de andar agitada sem saber o que fazer, até ao momento em que compreendi que o problema estava no facto de eu não gostar dele, coisa que nunca me tinha acontecido com nenhuma criança até ali. Decidi, por isso, que haveria de gostar.
Cada vez que ele vinha e se sentava à minha frente, porque ele sentava-se sempre à minha frente no outro topo da mesa, estivessem outros miúdos sentados em torno, ou não. Aquele lugar era dele e raramente o cedia a não ser que já estivesse ocupado quando ele chegasse, o que era raro. Sentado à minha frente é como o recordo. Mas cada vez que vinha, dizia eu, e se sentava à minha frente, eu dedicava alguns imperceptíveis segundos a observá-lo, em busca de algo de belo, de algo para eu gostar. E não foi difícil, há sempre algo de belo na alma humana, por muito escondido que esteja, é só uma questão de sermos capazes de para lá dirigirmos o nosso olhar.
O M. ficou comigo 4 ou 5 anos. Depois seguiu a sua vida e eu nunca mais dele soube, como aconteceu, aliás, com tantos outros.
Hoje recebi um telefonema da mãe dele e levei alguns segundos para a identificar. Hoje tenho outros M. e estou longe daquele que, posso afirmá-lo sem sombra de dúvidas, mais me ensinou nesta minha vida rodeada de tantas crianças e adolescentes. Ela ligou-me e eu estranhei o número que usou, nunca lho tinha dado, ele não existia nessa altura. Fomos à sua antiga morada e batemos a todas as portas até alguém nos dizer onde estava, explicou-me ela. É que a minha filha precisa de ajuda e o M. lembrou-se logo de si.
Não há muito tempo dei comigo a pensar até que ponto estas crianças que por mim têm passado, ao longo dos anos, me lembrarão. Hoje tive a minha resposta e ela comoveu-me.
Por vezes, muitas vezes, nesta vida questionamos até que ponto o nosso trabalho é realmente útil. Nunca tive dúvidas do quanto tenho aprendido com todas estas crianças, mas duvidei muitas vezes o quanto aprenderam elas comigo.
O M. está na Faculdade, é doido por números e é já, praticamente, um homem. Tem namorada e emprego prometido porque, ao que parece, tem impressionado. Quem diria?!...
Ensinar e aprender estão irremediavelmente ligados. Ensinar e aprender é uma preciosíssima troca de riqueza humana. Mas não é tanto com os dóceis que um professor mais aprende, é com os outros, os resistentes, os rebeldes, os desinteressados, os verdadeiramente difíceis.
Hoje, mais do que nunca, o M. tocou o meu coração e eu quero agradecer-lhe por isso.

5 comentários:

Maria_S disse...

Que bom...parabéns. Bjs.

CF disse...

:) Ufa. Até a mim me tocou. No fundo, ainda acho que quem age de coração, nunca passa em vão :)

Inês disse...

Mais uma lição da Senhora Antígona... o jeito que me davam umas explicações...
Beijinho

Sputnick disse...

Parte da obra é tua. Parabéns. Bjs.

Goldfish disse...

Eu não sei se todos os que lidam com crianças se apercebem de que só gostando delas e do que se ensina é que se consegue fazer as aulas (ou seja o que for) funcionar. Senti isso na pele quando ensinei, houve turmas (não muitas, senão tinha desistido) de que não consegui gostar à partida. E vice-versa. As coisas foram melhorando, mas tive de me esforçar - não são as crianças que têm de ter maturidade para isso, somos nós. E espero que possa ajudar a irmã do M. também, já agora...